domingo, 19 de abril de 2015

(*) Meus Anos 20 Foram Uma Festa (Com Eles)


Vim a Chicago pela primeira vez nos anos 20, para assistir a uma luta. Ernest Hemingway veio comigo e ficamos hospedados na academia de Jack Dempsey. Hemingway tinha acabado de escrever dois contos sobre boxe, e, embora eu e Gertrude Stein tivéssemos achado que estavam bonzinhos, ainda precisavam de algumas mexidas. Gozei com a cara de Hemingway sobre o romance que ele estava escrevendo e rimos a valer e nos divertimos um bocado e então calçamos as luvas de boxe e ele me acertou o nariz.

Naquele inverno, Alice B. Toklas, Picasso e eu alugamos uma vila no sul da França. Eu estava revisando as provas do meu romance, já considerado o grande romance americano, mas as letras eram tão miudinhas que não consegui chegar ao fim dele.

Toda tarde, Gertrude Stein e eu costumávamos procurar objetos raros nos antiquários, e lembrando-me de lhe ter perguntado se ela achava que eu devia continuar escrevendo. Com aquele seu jeito tipicamente oblíquo que encantava a todos, ela disse “Não”, o que naturalmente queria dizer sim. Portanto, embarquei para a Itália no dia seguinte. A Itália me lembrava Chicago, principalmente Veneza, porque ambas as cidades tem canais e suas ruas são cheias de estátuas e catedrais construídas pelos maiores artistas do Renascimento.

Naquele mês, fomos ao estúdio de Picasso em Arles, que então era chamada Rouen ou Zurique, até que os franceses a rebatizaram em 1589 sob Luís, o vago (Luís foi um rei bastardo do século XVI, que não dava colher de chá a ninguém). Picasso estava justamente começando o que depois seria conhecido como sua “fase azul”, mas, como parou para tomar café comigo e com Gertrude, sua “fase azul” só começou, na realidade, uns 10 minutos depois. Durou quatro anos. Portanto, não creio que aqueles 10 minutos tivessem feito muita diferença.

Picasso era um sujeito baixinho que andava de maneira engraçada, pondo o pé na frente do outro até completar o que costumava chamar de “passos”. Riamos muito, mas, por volta de 1930, o fascismo começou a crescer e já quase não havia do que rir. Gertrude Stein e eu examinávamos os quadros de Picasso com muito rigor, e Gertrude era da opinião de que “a arte, qualquer arte, não passa de uma expressão de alguma coisa”. Picasso não concordava e respondia: “Não me encha o saco. Deixe-me almoçar.” Acho que ele tinha razão. Pelo menos almoçava regularmente.

O estúdio de Picasso era totalmente diferente do de Matisse. Enquanto o de Picasso era uma bagunça, Matisse mantinha o seu em perfeita ordem. Vice-versa também. Em setembro daquele ano, Matisse aceitou uma proposto para pintar um afresco, mas, com a doença de sua mulher, não pode terminar o trabalho e, por isso, eles tiveram de se contentar com o papel de parede. Lembro-me de tudo isso perfeitamente porque foi logo antes daquele inverno que passamos num pequeno apartamento no norte da Suíça, onde a chuva tem o estranho hábito de começar e, de repente, parar. Juan Gris, o cubista espanhol, convenceu Alice Toklas a posar para uma natureza morta e, com a sua característica concepção abstrata dos objetos, começou a quebrar-lhe a cara e o resto do corpo para reduzi-lo às formas geométricas básicas, mas nunca chegou a concluir a obra porque a polícia interveio. Gris era um espanhol provinciano, e Gertrude Stein dizia sempre que só um verdadeiro espanhol podia ter feito o que ele fez; tentar criar obras primas a partir do nada e ainda falar espanhol ao mesmo tempo. Era realmente um deslumbre.

Recordo-me que, certa tarde, estávamos sentados num bar de lésbicas no sul da França, com nossos pés confortavelmente instalados no parapeito da varanda, a qual ficava no norte da França, quando Gertrude Stein disse: “Estou enjoada”. Picasso achou muito engraçado e Matisse e eu tomamos isso como uma espécie de senha para irmos à África. Sete semanas depois, no Quênia, encontramos Hemingway, já bronzeado e de barba e dominando totalmente o estilo seco e descritivo que o caracterizaria. Ali, no chamado continente negro, jactou-se mil vezes de ter quebrado caras de uns e outros.

“Que que há, Ernest?”, perguntei. Hemingway falou longamente sobre a morte e aventura, do jeito que só ele sabia e, quando acordei, ele já havia armado a barraca e estava fazendo uma enorme fogueira para cozinhar alguns tira-gostos de dois ou três elefantes que acabara de abater. Brinquei com ele sobre sua barba e rimos à beça, tomamos conhaque, calçamos as luvas de boxe e ele acertou meu nariz.

Naquele ano voltei a Paris para falar com um compositor europeu, magrinho e nervoso, de nariz aquilino e olhos incrivelmente rápidos, e que um dia se tornaria Igor Stravinsky e, mais tarde, seu próprio melhor amigo. Hospedei-me na casa de Man e Sting Ray, e Salvador Dali apareceu várias vezes para jantar, sendo que certo dia Dali resolveu dançar a dança do ventre, o que foi um enorme sucesso, principalmente porque ele estava com dores de prisão-de-ventre.

Lembro-me de que, uma noite, Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda resolveram voltar para casa depois de uma agitada festa de réveillon. Estávamos em abril. Havia três meses que não ingeriam nada senão champanha e, na semana anterior, tinham, despencado, com oceano, apenas para pagar uma aposta. Os Fitzgerald eram autênticos, isto ninguém pode negar. Eram pessoas muito simples e, quando Grant Wood convidou-os a posar para o seu “Gótico Americano”, ficaram simplesmente encantados. Mas, pelo que Zelda me contou, Scott vivia deixando cair o forcado.

Nos anos seguintes, eu e Scott ficamos cada vez mais amigos e muitos acreditam que ele tenha baseado o protagonista de seu último romance em mim e que eu teria baseado minha vida no protagonista de seu romance anterior, e o resultado é que eu acabei sendo processado por um personagem de ficção.

Scott tinha sérios problemas para disciplinar seu trabalho e, embora ambos adorássemos Zelda, chegamos à conclusão de que ela produzia um efeito negativo em seu trabalho, reduzindo a sua produção de um romance por ano a uma esporádica receita anual de peixe e uma série de vírgulas.

Finalmente, em 1929, fomos todos juntos à Espanha, onde Hemingway apresentou-me a Manolete, o qual era tão sensível que parecia efeminado. Usava constantemente calças justas de toureiro e, ocasionalmente, salto alto. Manolete era um grande artista, dos maiores. Se não tivesse se tornando um excepcional toureiro, possuía tanta graça que teria ficado famoso no mundo inteiro como guarda-livros.

Divertimo-nos a valer na Espanha e viajamos e escrevemos e Hemingway levou-me para pescar atum e pesquei quatro latas e rimos muito e Alice Toklas perguntou-me se eu estava apaixonado por Gertrude Stein porque havia-lhe dedicado um livro de poemas, embora os poemas fossem de T.S. Eliot eu disse que sim, que a amava, mas que a coisa nunca daria certo porque ela era muito inteligente para mim, e Alice Toklas concordou, e então calçamos as luvas de boxe e Gertrude Stein acertou meu nariz.


(Os Anos 20 Eram Uma Festa)
("Cuca Fundida", Woody Allen)
(por Gelson Bessa, 15/04/2015)
(Iniciando os anos 30, Rsrs...)

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